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sábado, fevereiro 25, 2012

"Cântico Negro" de José Régio

Cântico Negro 

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
...
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

José Régio

(E aqui...dito pelo grande João Villaret: http://www2.mat.ua.pt/rosalia/caminhos/JRegio/cantico.wav)

sexta-feira, dezembro 23, 2011

O sino da minha aldeia

O sino da minha aldeia
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro de minha alma.


E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida

           
Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.

               
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

                                          
Fernando Pessoa

terça-feira, agosto 30, 2011

Segredo


Borboletas que vivem e que morrem
Borboletas que voam pelos campos
Borboletas mortas de cores vivas
Num sonho purpúreo enternecido.
São tantas essas borboletas belas
Em voo disforme
E sem compasso!
São a luz e são a morte,
Porque talvez ocultem
O segredo de um túmulo longínquo!
Se elas sentissem, como eu,
O cheiro extenuante desta vida
em bruxuleantes chamas renitentes,
Banhar-se-iam no leite dos lírios brancos
em que o vibrante Sol,
todos os dias,
Se acaricia antes de surgir!

M. Cerveira Pinto
Boassas, Maio de 1958 (in "No dealbar da imensidão", pág. 14)

terça-feira, maio 03, 2011

Ode ao gato

Os animais foram
inacabados,
longos de cauda, tristes

de cabeça.
Pouco a pouco foram-se
formando,
tornando-se paisagem,
adquirindo sinais, graça, voo.
O gato,
só o gato,
apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.


O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente gostaria de ter asas,
o cão é um leão confuso,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca
mas o gato
quer somente ser gato
e todo o gato é gato
desde o bigode ao rabo,
desde pressentimento a ratazana viva,
desde a noite escura até seus olhos de ouro.

Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor

tal contextura:
é uma coisa única
como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
é firme e subtil como
a linha da proa de uma nave.
Seus olhos amarelos
deixaram uma única
ranhura
para lançar as moedas da noite.
 
Oh pequeno
imperador sem orbe.
 

(Pablo Neruda)

sábado, março 19, 2011

DA MINHA ALDEIA

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo....
Por isso a minha aldeia é grande como outra qualquer

...Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista a chave,
Escondem o horizonte, empurram nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a única riqueza é ver.


Fernando Pessoa

quinta-feira, setembro 09, 2010

EM TODAS AS RUAS TE ENCONTRO

"Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco"

(Mário Cesarinny)

quarta-feira, abril 07, 2010

Os amigos

Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham;
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria -
por mais amarga. 

Eugénio de Andrade

segunda-feira, dezembro 28, 2009

Rio de Ouro


Rio de Ouro

Amo este e não outro
O de prata é lindo - ouço dizer
O brilho está em quem nas margens vive

Quero este e não outro
O Tejo é mais imponente - há quem o julgue
A força está nas margens que lhe dão vida

Sinto este e não outro
O Ganges é local de oração - dizem as escrituras
Apenas este desperta a fé que preenche o meu coração

Adriana Carmezim in "No Silêncio do Amor", 2005

terça-feira, janeiro 20, 2009

Auto-censura


A pior censura é sempre aquela que impomos a nós próprios. Dei por mim a perguntar-me porque motivo não me apetecia escrever ou publicar o que quer que fosse. A resposta acabaria por chegar, de forma natural, quando ao conversar com alguém acabei por dizer que apenas me apetecia escrever sobre a Palestina. Nos tempos que correm, em que mal nos pronunciamos sobre a situação do povo palestiniano logo somos apelidados de anti-semitas, acabamos por nos impor este silêncio ensurdecedor... Em jeito de redenção, aqui fica um belíssimo poema do maior poeta palestiniano (perseguido pelas autoridades israelitas, pela sua intifada das palavras...), acompanhado de um expressivo desenho de José Emídio.

Para uma melhor informação ver o "dossier" do jornal "Público": "Guerra em Gaza"

quarta-feira, dezembro 24, 2008

O Natal visto por Rubens e Jorge de Sena


Natal de 1971

Natal de quê? De quem?

Daqueles que o não têm?

Dos que não são cristãos?

Ou de quem traz às costas

As cinzas de milhões?

Natal de paz agora

Nesta terra de sangue?

Natal de liberdade

Num mundo de oprimidos?

Natal de uma justiça

Roubada sempre a todos?

Natal de ser-se igual

Em ser-se concebido,

Em de um ventre nascer-se,

Em por de amor sofrer-se,

Em de morte morrer-se,

E de ser-se esquecido?

Natal de caridade,

Quando a fome ainda mata?

Natal de qual esperança

Num mundo todo bombas?

Natal de honesta fé,

Com gente que é traição,

Vil ódio, mesquinhez,

E até Natal de amor?

Natal de quê? De quem?

Daqueles que o não têm?

Ou dos que olhando ao longe

Sonham de humana vida

Um mundo que não há?

Ou dos que se torturam

E torturados são

Na crença de que os homens

Devem estender-se a mão?

Jorge de Sena, Exorcismos

sábado, fevereiro 18, 2006

Momento de poesia em tempos conturbados...

...e porque a cada dia que passa parece fazer mais sentido este magnífico poema de Ibn 'Arabi (séc. XII-XIII), natural de Múrcia, místico, filósofo, poeta e sábio.

Meu coração tornou-se capaz
de assumir qualquer forma;
ele é um pasto para gazelas e um convento para monges cristãos,
um templo para ídolos e a Caaba dos peregrinos,
as tábuas da Torah e o livro do Corão.
Eu sigo a religião do Amor:
qualquer que seja o caminho que o Amor toma,
esta é a minha religião e a minha fé.

Agradeço ao António e ao seu brilhante "Local & Blogal".
Xucrán jazilah, pois...

segunda-feira, julho 18, 2005

Porto Antigo



Porto Antigo

Aqui onde as casas envelhecem
Sou a todo o momento
O rio partilha comigo seu tempo
A música do lugar envolve o meu corpo nu
Sinto-me uma rocha que vê a vida passar

(por Adriana Carmezim, in "No Silêncio do Amor", Junho de 2005)

(photo by Cerveira Pinto . all wrights reserved)