(Uma experiência urbana no brasileiro estado do Paraná, que faz fronteira com o Paraguai e com a Argentina)
Curitiba, capital do Estado do Paraná, tem quase um milhão e meio de habitantes. A sua situação geo-estratégica coloca-a num lugar privilegiado.
O Estado do Paraná faz fronteira com o Paraguai e com a Argentina.
Para além de ter uma boa abertura fronteiriça com esses países, Curitiba encontra-se numa situação específica onde, num raio de 1300 Km, estão situados os maiores pólos económicos do Brasil, ficando assim situada no centro da região mais industrializada da América do Sul. Mas, ao mesmo tempo, o Estado do Paraná confina com uma das maiores e mais belas reservas naturais: as espectaculares cataratas de Iguazú.
A experiência de Curitiba nada tem a ver com uma "utopia" ecológica desligada da envolvente social brasileira. Não é portanto um "modelo" fechado que vive por exclusão esquizofrénica da restante realidade brasileira.Contudo, contendo no seio da sociedade-cidade todos os contrastes e contradições da sociedade brasileira (a pobreza e a opulência) assiste-se também a uma realidade singular que não deixa de nos surpreender. Aqui, nesta experiência urbana, existe uma estratégia envolvente que sem rigidez nem purismos vai entrelaçando desejos e realidades, vai despoletando a participação das populações num movimento de pedagogia social, em que a utopia se concretiza e a realidade vivida tem referências românticas dum idealismo cívico e ecológico que o pessimismo conservador julgava impossível.
Duma forma sintética julgo que o segredo desta experiência reside no facto de se ligarem aspirações sociais aos interesses individuais e esses mesmos interesses às aspirações, graças a uma mobilização contínua na solução dos problemas, gerando-se pela prática a consciência acrescida das populações e do seu papel na transformação e mudança de vida.
O paradigma exemplar desta pedagogia social pode revelar-se em algumas das actuações que referiremos em seguida:
1. Reciclagem dos lixos
A campanha "lixo que não é lixo - lixo que é riqueza" promoveu, à escala do bairro, uma mobilização popular forte. Os mais desfavorecidos, com o apoio de carrinhos distribuídos pela municipalidade, transformaram-se nos "catadores de papel" e descobriam que o lixo era assim moeda de troca no "câmbio verde" organizado pelo município.
O "camião verde" apanhava, em pontos estratégicos, várias recolhas de bairro efectuadas pelos populares e "pagava" o lixo com os certificados que permitiam a troca por alimentos, livros, bilhetes culturais, brinquedos, etc. Nascia também, neste contacto entre a população e a instituição camarária, uma nova realidade: a recolha do papel em Curitiba salvava 1516 árvores por dia.
2. Apoio aos excluídos
A progressiva consciência das populações carenciadas desenvolveu-se também com a experiência da "Fazenda Solidariedade" - quinta agrícola de Campo Magro, onde se faz a reintegração social de desempregados e se promove, graças aos produtos rurais que aí se produzem, a elaboração de uma sopa distribuída por um autocarro refeitório que atende cerca de 92.212 pessoas carenciadas, por ano.
3. 0 Jardim e o Museu Botânico de Curitiba
Para além dos especialistas que investigam e coordenam os trabalhos notáveis do jardim botânico, são também convidadas escolas para o trabalho no jardim, com a orientação de professores. Aí se educa o amor pela terra e a formação ecológica das crianças e jovens.Uma das actuações no jardim botânico foi a criação de um jardim medicinal que propiciou a plantação de espécies fitoterápicas em pequenos vasos que constituem viveiros didácticos que apoiam as "farmácias" caseiras e a "farmácia verde" em conexão com os serviços de saúde.
4. A Universidade Livre do Meio Ambiente
Reciclando postes de eucalipto, que anteriormente serviam de postes telefónicos, construiu-se um equipamento em madeira que serve de logística para a universidade livre, integrada num parque ecológico. Graças ao "design" criativo do arquitecto Domingos Bongestabes, foi possível gerar-se, com materiais pobres, uma interessante estrutura arquitectónica que se integra maravilhosamente no "sítio".
Neste local funciona uma organização não governamental, a Universidade Livre do Meio Ambiente, cuja iniciativa tem sido essencial na investigação ecológica e na formação de quadros promotores do eco-desenvolvimento.
Não se pode deixar também de falar de várias outras experiências sociais, que contribuem para este envolvimento pedagógico entre a municipalidade, as instituições, as associações não governamentais e a sociedade civil: as Feiras Livres de Agricultura, que aproximam os produtores agrícolas dos consumidores; a Feira Verde, onde se comercializam produtos naturais, sem químicos; e o "Shopping Popular", cooperativa de consumo. São iniciativas em que a vida económica se manifesta numa óptica de solidariedade, procurando não apenas respostas quantitativas mas enunciando estratégias qualitativas para um modo alternativo de sociedade. O "Farol do Saber" é também mais um exemplo para melhor se entender este processo que se constrói todos os dias no seio de clivagens sociais antagónicas, entre esperanças e ilusões, num desafio permanente à recuperação estagnante e à mudança. O "Farol do Saber" está a generalizar-se pelos diferentes bairros. É um centro polivalente que funciona como Escola/Biblioteca/Sala de convívio cívico e centro da polícia municipal.
Trata-se de uma arquitectura emblemática. Referenciando-se ao "farol de Alexandria", pretende ganhar visibilidade na cidade. Implantaram-se já alguns desses edifícios modelos em vários bairros. Do lanternim cimeiro da torre, durante a noite, espelham-se os clarões luminosos, assinalando o local da cultura, do encontro cívico e da segurança social.
São estas algumas das sementes desta experiência social. Acompanham e catalizam experiências espaciais.
Na cidade, surgem zonas verdes, parques, redes de transportes públicos que pretendem em comodidade e serviço, dissuadir o tráfego automóvel no centro da cidade. Vão surgindo as propostas de concretização e melhoramento do plano director.
Fizeram-se saneamentos especiais, limparam-se ribeiros e criaram-se novos loteamentos com casas sociais, numa grande diversidade de linguagens e materiais. Está-se a promover, depois do bairro novo e no seguimento da rua das tecnologias, a cidade verde ou a eco-cidade que, distendendo-se ao longo da periferia de Curitiba, acumula experiência, multiplica dinâmicas sociais e aponta para novos modelos de espaços públicos, energias renováveis e sistemas integrados de transportes. Curitiba não é um paraíso, nem um modelo acabado onde se eternizaram ideais imutáveis de uma utopia sem falhas. Curitiba é um processo. Mas um processo onde todos os dias se tentam ganhar mais actores à construção de uma cidade onde se experimentam e inovam mudanças numa sociedade de contradições e antagonismos.
A. Jacinto Rodrigues, professor catedrático da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto
(Artigo publicado no Jornal "a Página", ano 8, nº 76, Janeiro 1999, p. 16.)